terça-feira, 13 de maio de 2008

Cana não ameaça produção de alimento

Especialistas afastam risco de crise agrícola com aumento do cultivo para fabricação de álcool

Uma repetida falácia já se tornou alvo de chacotas entre os estudiosos e especialistas do mercado de etanol. Trata-se da idéia de que poderia ocorrerumacrise agrícola e de oferta de alimentos caso a cana-de-açúcar invadisse áreas hoje ocupadas por pastagens e lavouras. Nos últimos meses, alertas de governos no exterior — como o venezuelano e o cubano — centraram fogo nos riscos da falta de alimentos no país se o Brasil plantar cana demais. No entanto, cálculos mostram que um cenário como esse está bem distante de acontecer e, mesmo que certos desequilíbrios ocorram, há um consenso entre estudiosos de que as regras naturais do mercado — de oferta e demanda de produtos — levarão à estabilidade natural do setor.

“É uma bobagem tremenda, imensa”, diz Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura e copresidente da Comissão Interamericana de Etanol. “Nós podemos perfeitamente explorar esse novo mercado de biocombustíveis de forma organizada, dentro de uma estratégia de crescimento organizada e bem planejada, com apoio de poder público e iniciativa privada”, diz Rodrigues. Para desmistificar o “ecobesteirol”, Rodrigues dá os números. Segundo ele, o Brasil tem 90 milhões de hectares aptos para novas plantações agrícolas. Deste total, 22 milhões de hectares podem ser ocupados pela cana-deaçúcar no futuro, por conta de condições climáticas e de solo favoráveis. Mesmo que todo esse espaço venha a ser ocupado, sobrariam, portanto, ainda 68 milhões de hectares para a cultura de diversos tipos de alimentos.

Os especialistas vão mais longe nas contas. Se o Brasil, o segundo maior produtor de etanol do mundo — perde apenas para os EUA — quiser substituir 10% de todo o consumo de gasolina no globo pelo etanol brasileiro, precisaria plantar mais 24 milhões de hectares de cana, de acordo com estudo que está sendo elaborado por técnicos do Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE). Ou seja, grosso modo, bastaria ocupar as pastagens que já foram identificadas no país como aptas para a plantação no futuro para que a meta dos 10% seja alcançada. “Ao se levarem em conta os possíveis ganhos tecnológicos que podem ser obtidos a médio prazo na produção, o tamanho da nova área a ser explorada seria menor, de 14,4 milhões de novos hectares. Nós temos terra para isso”, afirma Lúcia Carvalho Pinto de Melo, presidente do CGEE.

“Precisamos analisar esse tema com isenção, sem grandes paixões. Não haverá uma produção de cana descomedida no país “, afirma Melo. O projeto do órgão, coordenado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi iniciado em 2005, em parceria com o Ministério da Ciência e Tecnologia. A meta do trabalho é preparar o país para expandir a produção de etanol, de forma sustentável, e abastecer os mercados externo e interno.

OBrasil deverá colher, na safra de 2007, 6,7 milhões de hectares de cana-de-açúcar, segundo dados previstos em abril pelo IBGE. É uma alta de 8,9% em relação ao ano anterior. A colheita do produto deverá somar 513 milhões de toneladas — o que representa uma elevação de 12,7% em comparação a 2006. Desse volume de 6,7 milhões previstos, metade será cana para a produção de açúcar e a outra metade, para etanol. É possível afirmar, portanto, que empouco mais de 3,3 milhões de hectares de cana colhida, o Brasil produz 17 bilhões de litros de etanol — a segunda melhor marca no mundo (os EUA estão produzindo 19 bilhões de litros).

Todo esse álcool deve sair das usinas brasileiras, que se propagam pelo interior do país. O Ministério de Minas e Energia informa que há 325 usinas de álcool em operação no Brasil hoje. Até o final de 2007, 17 entram em operação e, para 2008, serão mais 26 usinas, boa parte com dinheiro da iniciativa privada, que descobriu como lucrar nesse filão.

Esse volume crescente de usinas pipocando pelo país fez alimentar os temores em torno de um possível desequilíbrio no mapa agrícola brasileiro. Com o assunto etanol na ordem do dia, pecuaristas e agricultores começaram a olhar esse mercado como chance rara de ganhar dinheiro. A região do Centro-Oeste, por exemplo, deve elevar a produção de cana em 14,5% em 2007, relata o IBGE. O Mato Grosso do Sul, forte na pecuária bovina, puxa essa alta, com expansão de 35% na área a ser destinada para a cultura da cana neste ano.

Mesmo com esse crescimento, na avaliação de José Goldemberg, ex-secretário estadual de Meio Ambiente, não há razões para alarmes por duas razões principais. Em primeiro lugar, para ele, é preciso levar em conta a baixa produtividade da pecuária de corte brasileira. Existiam 225 milhões de hectares explorados pelos pecuaristas em 2006, com cerca de 207 milhões de cabeças bovinas, relata o IBGE. Isso é menos de uma cabeça por hectare e, também, um indicativo de que há terras a serem mais bem exploradas pelo país, sem que seja preciso uma diminuição no tamanho do rebanho brasileiro, afirma ele.

Além disso, há uma segunda questão importante, salientada por Goldemberg e pelos especialistas envolvidos nesse debate. Agrônomos e economistas concordam em que o risco de um desequilíbrio no sistema agrícola será controlado pelas regras básicas de mercado. Em outras palavras, é a lei da oferta e da demanda que trará estabilidade ao mapa agrícola brasileiro. “Se todos plantarem cana, vai ter produto demais, o preço cairá e, meses depois, o agricultor vai perceber que já não vale tanto a pena o cultivo e, então, volta a plantar qualquer outra coisa. O açúcar, inclusive, já caiu de preço nos últimos tempos e pode cair mais, e a soja está subindo de novo”, diz Roberto Rodrigues. “É o mercado que manda e que trará harmonia para o sistema”, afirma.

Na avaliação de Oscar Braunbeck, professor da Faculdade de Engenharia Agrícola da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ganhos de produtividade podem ser alcançados nas áreas onde já existe a cultura da cana. São Paulo é o maior Estado produtor, com previsão de atingir 295 milhões de toneladas de cana produzidas em 200, uma alta de 11% em relação a 2006. O aumento de produtividade no campo desde os anos 70, atinge uma média de 4% ao ano, relata Lúcia Melo, do CGEE. “Existe uma possibilidade de aumentarmos a mecanização na produção da cana. Isso já elevaria nossos ganhos nas áreas já exploradas. Cerca de 70% do corte da cana no país ainda é manual”, afirma Braunbeck. Como efeito desse processo, a mão-de-obra precisaria ser remanejada para a cultura de outros itens agrícolas, sob pena de uma elevação do desemprego.

Nos anos mais recentes, particularmente 2004 e 2005, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, captou um contingente de cerca de 500 mil empregados ocupados na cultura da cana-de-açúcar no Brasil. Avanços tecnológicos levariam à necessidade de recolocar parte dessa massa de trabalhadores. Para Roberto Rodrigues, um dos caminhos para amenizar riscos sociais seria utilizar terras com topografia irregular — terrenos mais inclinados, onde há a cultura da cana, para a produção de outros tipos de produtos. “Em 10% a 12% das terras ocupadas pela cana no país não dá para utilizar máquinas por causa da topografia. O trabalho é manual. Nessas regiões, é possível usar a mão-deobra na plantação de frutas, extração de borracha ou produção da madeira, mantendo o emprego e levando os agricultores a atuarem numa cultura mais nobre e produzirem itens de maior valor também”, aconselha ele.

Os presidentes Hugo Chávez, da Venezuela, e Fidel Castro, de Cuba, por razões políticas e econômicas, já se posicionaram de forma contrária à expansão na produção de etanol no Brasil.

A Venezuela é um dos maiores produtores de petróleo do mundo. Em março, Chávez disse que “a substituição da produção de alimentos para a população para a produção de alimentos para carros [o combustível etanol], como forma de dar sustentação ao ’american style of life’, é uma coisa de loucos”. Fidel Castro foi na mesma toada. O presidente cubano afirmou, há dois meses, que “a idéia de usar alimentos para produzir combustível é trágica e dramática”. Foi mais longe ao afirmar que essa é “mais uma das tragédias que acontecem neste momento”.

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