Com capital de sobra, mercado sedento e apoio maciço do governo, a indústria americana da tecnologia entra para valer na corrida da próxima geração de combustíveis
Da qualidade do solo à engenharia genética, não há como negar: o Brasil é o líder indiscutível na produção de etanol. As usinas daqui têm os menores custos e a maior produtividade, e a experiência de 30 anos com o álcool de cana-de-açúcar garante ao país a supremacia tecnológica no mundo dos biocombustíveis. Até agora o Brasil pode dar-se ao luxo de praticamente não ter competidores. Mas essa situação vai mudar. O etanol deixou de ser considerado uma curiosidade tropical e hoje desperta interesse em todo o planeta, seja por causa do aquecimento global, seja por causa do preço do petróleo importado do Oriente Médio. A concorrência mais ameaçadora vem dos Estados Unidos, mas não está nas plantações de milho nem nas barreiras tarifárias -- está nos laboratórios e no modelo de inovação do Vale do Silício.
Pesquisadores do mundo todo, especialmente americanos, estão debruçados sobre microscópios e computadores em busca da nova geração de biocombustíveis. O principal candidato é o etanol celulósico, que pode vir do capim, da palha do milho, de lascas de madeira e de dezenas de outras fontes. Há outras tecnologias ainda mais inovadoras, como uma improvável gasolina feita de açúcar, que faz funcionar motores de carro a gasolina e tem até uma versão para mover turbinas de avião. Por trás dos inúmeros trabalhos ligados aos novos biocombustíveis está o dinheiro -- muito dinheiro. Só nos últimos seis meses, fundos de capital de risco, bancos de Wall Street e empresas petrolíferas investiram mais de 200 milhões de dólares na nova tecnologia. O governo federal americano, por meio do Departamento de Energia, vai distribuir 385 milhões de dólares nos próximos quatro anos a seis empresas que constroem as primeiras usinas de etanol de celulose. A British Petroleum anunciou uma doação de 500 milhões de dólares à Universidade da Califórnia em Berkeley para liderar um grupo de estudos de biotecnologia cujo objetivo é encontrar maneiras mais eficientes de transformar a celulose em açúcar e, depois, em combustível. Na corrida pelo combustível verde do futuro, o Brasil ainda está atrasado. "Embora algumas inovações tenham surgido aqui, a inovação também vem da Europa e da América do Norte - e a um ritmo bem mais veloz do que no Brasil", disse a EXAME James McMillan, responsável pela área de pesquisa em biorrefino do Centro Nacional de Bioenergia e do Laboratório Nacional de Energias Renováveis, órgãos do governo americano. David Rothkopf, autor do mais completo estudo sobre o tema, também é contundente: "O maior risco para o país, hoje, é ser complacente e ficar sentado sobre as glórias passadas".
A idéia do etanol celulósico não é nova, pelo contrário. Nove anos atrás, a empresa BC International lançou a pedra fundamental de uma usina piloto para produzir combustíveis de restos agrícolas. Na ocasião, representantes do governo americano profetizaram que, em 2009, a produção já seria equivalente à de milho. Sabe-se hoje que é impossível cumprir essa meta. Mas as tentativas continuam. Em fevereiro passado, a mesma companhia, rebatizada de Celunol, começou as obras de outra usina de combustível celulósico, muito maior e mais ambiciosa. "Vamos produzir 5 milhões de litros a partir do próximo ano", diz Carlos Riva, presidente da Celunol. "Em dois ou três anos teremos uma planta comercial, com capacidade de cerca de 100 milhões de litros."
É fácil entender o enorme interesse pela nova modalidade de biocombustível. O presidente americano, George W. Bush, anunciou em janeiro a meta de produzir 132 bilhões de litros de biocombustíveis em 2017 para reduzir a dependência do país do petróleo. Não é possível contar apenas com o milho para atingir essa meta. Neste ano, a produção de etanol nos Esta dos Unidos deve ser de 22,8 bilhões de litros, e estima-se que o limite teórico, sem afetar o uso do grão na alimentação, seja algo próximo de 55 bilhões. Todo o resto só pode vir da importação ou da celulose, o material orgânico mais abundante do planeta. Nos laboratórios, diversos métodos já foram descobertos para extrair os açúcares que compõem a celulose e que podem guardar o segredo para uma mina de ouro vegetal. Algumas abordagens, como a da Celunol, envolvem bactérias modificadas geneticamente. A também americana Mascoma busca obter num único passo a extração do açúcar e a fermentação. Uma terceira abordagem, da Range Fuels, envolve o uso de um processo termoquímico para gaseificar lascas de madeira e, com um catalisador, transformá-las em álcool combustível. "O governo dos Estados Unidos está investindo muito. O assunto é visto como uma questão de segurança nacional", diz Jorge da Silva, brasileiro que ocupa a posição de líder do centro de estudos com cana-de-açúcar da Universidade do Texas. "Não é só discurso. Há um sensível aumento de recursos disponíveis para pesquisa em biocombustíveis."
Todas essas técnicas funcionam em laboratório. Para torná-las uma realidade comercial, as empresas contam com um modelo que já provou seu valor na indústria da tecnologia: os fundos de capital de risco. A maioria das companhias iniciantes conta com recursos de Vinod Khosla, fundador da Sun Microsystems e da Khosla Ventures. O indiano já investiu em pelo menos uma dúzia de empresas ligadas aos novos biocombustíveis. Assim como no boom da internet, algumas não vão dar em nada -- mas a estratégia é esperar que um acerto pague com sobra todos os outros fracassos. Entre todas as tecnologias que buscam conseguir o biocombustível da nova geração, e também parte do portfólio de Khosla, uma das idéias mais radicais é da Amyris. A empresa nasceu com uma doação de 42 milhões de dólares da Fundação Bill e Melinda Gates para fazer um composto para baratear os remédios antimalária. A técnica envolve o uso de uma bactéria geneticamente modificada. No meio do processo de desenvolvimento, os fundadores descobriram que a mesma bactéria, em contato com o açúcar, poderia dar origem também a um combustível vegetal de propriedades parecidas com as da gasolina. Nascia ali a "gasolina de açúcar".
O combustível patenteado pela Amyris tem uma diferença fundamental em relação ao etanol: não exige a adaptação dos carros nem da infra-estrutura de distribuição atuais. Além disso, a gasolina de açúcar tem valor energético 30% maior que o do álcool, a um custo de produção idêntico. "Por que usar etanol se você pode ter uma alternativa mais eficiente pelo mesmo preço?", diz o português John Melo, presidente da empresa. Melo, ex-presidente da divisão de combustíveis da gigante BP nos Estados Unidos, esteve no Brasil pela primeira vez no início de maio. Visitou a usina Santa Elisa, em Sertãozinho, no interior paulista, para iniciar conversas sobre uma possível parceria. Em vez de fermentar o suco da cana com levedura, como se faz tradicionalmente, Melo quer convencer os produtores brasileiros a usar a bactéria desenvolvida pela Amyris. A grande vantagem é que não é preciso investir em novas infra-estruturas: as plantas atuais podem, com algumas adaptações, produzir o novo biocombustível. "Posso voltar em três meses para iniciar negociações formais."
Embora ainda não haja um modelo de parceria definido com os usineiros brasileiros, a tecnologia da Amyris é uma das que têm as melhores chances de alcançar volume num curto espaço de tempo. O eta nol de celulose ainda tem um prazo de maturação mais longo. As estimativas mais otimistas apontam para no mínimo cinco anos de espera até que haja produção em larga escala - e até 15 anos de acordo com os conservadores. E isso, é claro, se for provada a viabilidade comercial. Estima-se que a quebra da celulose da palha de milho, por exemplo, custe algo como 2,5 dólares por galão. No Brasil, o galão de álcool de cana-de-açúcar sai hoje, pelo método tradicional, por cerca de 1 dólar. Enquanto essa questão do preço não for resolvida, quem vai continuar ganhando dinheiro com biocombustíveis são os brasileiros.
Embora poucos acreditem que essa nova geração vá representar uma ruptura para a indústria nacional do etanol, todos compreendem os riscos de não estar na fronteira da tecnologia. O conforto, como diz Fernando Reinach, diretor executivo da Votorantim Novos Negócios e um dos maiores especialistas do país no assunto, é que a natureza ainda é um diferencial competitivo essencial a favor do Brasil. Após a moagem, o bagaço da cana também pode ser usado para produzir combustível de celulose. E o clima dos trópicos garante que a cana tenha mais biomassa - e, portanto, seja mais produtiva que as alternativas estudadas lá fora. "É uma vantagem que não vamos perder nunca", diz Reinach. As desvantagens, claro, estão na enorme diferença de recursos para pesquisa. A Votorantim Novos Negócios tem duas empresas ligadas à melhoria genética da cana (Allelyx e Canavialis) e há seis meses criou a Biocell. A empresa estuda o etanol de celulose. Se os custos forem interessantes, segundo Reinach, a Votorantim Novos Negócios vai investir de 30 milhões a 40 milhões de dólares para construir uma usina. "O dinheiro e o risco são inteiramente nossos. Que incentivos recebemos? Zero", afirma Reinach. Os 30 anos de história da indústria brasileira do etanol, aliados à natureza, deram ao país uma liderança confortável em biocombustíveis. Mas a pergunta que muitos começam a se fazer é outra: onde estaremos nos próximos 30?
Fonte: 17.05.2007 - Sérgio Teixeira Jr. e Ricardo Cesar
quarta-feira, 6 de agosto de 2008
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